Desinformação sobre processo eleitoral mira base da democracia
Clara Becker
eGabriela de Almeida
Em comparação com 2018, as eleições deste ano apresentaram uma redução na circulação de fake news. Essa foi a avaliação feita pelo ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e que encontrou respaldo na diminuição do volume de desmentidos publicados pelas agências de checagem parceiras do Programa de Enfrentamento a Desinformação nas Eleições 2020, da corte. Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Cristina Tardáguila, diretora da International Fact-Checking Network, apontou que a aliança de checadores detectou neste ano apenas um terço do total de notícias falsas visto na última eleição presidencial, quando comparados os dois finais de semana que antecederam o primeiro turno dos pleitos.
Mas talvez ainda seja cedo para comemorar. Primeiro porque eleições municipais tendem a polarizar menos o país do que as nacionais. Segundo porque grande parte das notícias falsas não foi contra candidatos ou partidos específicos, mas colocava em dúvida o processo eleitoral em si. A estratégia, especialmente perigosa, pode mostrar seus danos apenas no longo prazo.
Quando se trata de desinformação, é impossível elencar qual é a mais prejudicial. As que difamam e ferem a honra de alguém podem destruir reputações injustamente, as que enganam sobre assuntos relacionados à saúde podem levar à morte ou ajudar a propagar doenças já erradicadas. Mas e quando o conteúdo enganoso coloca em suspeita o sistema eleitoral?
Na superfície parece ser uma atuação sem grandes danos, mas por baixo a democracia vem sendo golpeada. Golpes nada singelos, nem um pouco silenciosos, mas que muitas vezes só apresentarão suas reais marcas —e o tamanho dos estragos— mais à frente.
Não é de agora que sistema eleitoral vem sendo colocado em xeque no Brasil. Nas eleições de 2014, quando Dilma Rousseff (PT) foi eleita presidente do país, o candidato derrotado Aécio Neves (PSDB) pediu, via partido, que fosse feita uma auditoria para verificar a “lisura” da eleição. Um dos argumentos do texto protocolado apontou para um questionamento que estaria circulando pelas redes sociais a respeito da infalibilidade da apuração.
Corta para 2020. Seis anos depois, os atores são outros, mas o discurso segue uma lógica muito semelhante.
Um estudo feito pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV (Fundação Getulio Vargas), em cooperação com o TSE, mapeou e analisou postagens que questionam a integridade do processo eleitoral desde 2014 no Facebook e no YouTube. De acordo com a pesquisa, o recorde de achados ocorreu em 2018, com a soma de 32.586 publicações sobre desconfiança no sistema eleitoral. Em 2020, em apenas nove meses foram encontrados 18.345 posts sobre o assunto, superando todo o ano de 2014.
Em entrevista à Folha, o coordenador digital de combate à desinformação no TSE, Thiago Rondon, chamou atenção para o horizonte que se forma para as eleições de 2022. “Há uma probabilidade altíssima de que o cenário que estamos vendo na eleição americana, de tentativa generalizada de desacreditar o sistema eleitoral, vá se repetir no Brasil em 2022 se não nos prepararmos de forma adequada”, alertou.
Analisando o cenário dos últimos meses, esse futuro de fato não parece tão distante assim. Uma apuração feita por Marianna Spring, repórter especialista em desinformação da BBC, revelou que a estratégia de Donald Trump de alegar uma possível fraude no sistema eleitoral vem acontecendo há meses, com o auxílio de contas influentes no Twitter. E foi na plataforma favorita do presidente americano que foi dada a largada para as primeiras acusações de fraude em abril deste ano.
Desde então, e até as eleições que ocorreram no início de novembro, Trump mencionou “eleições fraudulentas” ou “fraude eleitoral” pelo menos 70 vezes, criando paulatinamente um conflituoso clima de desconfiança no sistema eleitoral. A estratégia agitou os aliados e fez crescer uma onda questionadora que embarcou nas teorias conspiratórias criadas pela equipe do presidente.
A ferramenta de monitoramento da agência de checagem Aos Fatos verificou que entre os dias 15 e 22 de novembro, mensagens criadas com o intuito de questionar a lisura do sistema eleitoral no Brasil foram compartilhadas ao menos 303 vezes em 55 grupos de discussão política no WhatsApp.
Assim como a experiência americana, por aqui esses conteúdos também ganharam força ao serem impulsionados por influenciadores e apoiadores de Jair Bolsonaro, um dos principais questionadores do sistema eleitoral brasileiro e, veja só, também do praticado nos Estados Unidos.
Em live recente em seu perfil no Facebook, Bolsonaro endossou o apoio à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/19, de autoria da deputada federal Bia Kicis (PSL), que exige a impressão de cédulas em papel na votação e na apuração de eleições, plebiscitos e referendos.
De acordo com o texto, essas cédulas poderão ser conferidas pelo eleitor e deverão ser depositadas em urnas indevassáveis de forma automática e sem contato manual, para fins de auditoria, mas críticos temem que a medida possa ser alvo de ações fraudulentas, com o intuito de um retorno da prática massiva de compra de votos.
Para especialistas, as falas públicas de Bolsonaro que colocam em suspeita o sistema eleitoral preparam o terreno para as eleições de 2022, para o caso de um resultado que seja desfavorável para o presidente.
Ao defender as urnas eletrônicas após o fim do segundo turno das eleições municipais, no domingo (29), Luís Roberto Barroso chamou atenção para a impossibilidade de fraude no sistema eleitoral e disse não ter “controle sobre o imaginário das pessoas”. “Há aqueles que acreditam que a terra é plana, tem gente que acha que o homem não chegou na lua e tem gente que acha que o Trump venceu as eleições nos Estados Unidos”, ironizou.
Poucas horas depois, apoiadores do presidente orquestraram uma ação de ataque ao ministro, que chegou aos trending topics do Twitter. Por meio do nome de João de Deus, médium que está preso acusado por mais de 300 mulheres de crimes sexuais, Barroso foi citado em posts que questionavam a fala dele sobre crenças a partir da reprodução de um vídeo antigo em que o ministro falava abertamente sobre o respeito que tinha pelo médium após a cura de um câncer, em um caso clássico de desinformação movida por descontextualização.
Barroso tem razão, não temos controle sobre o imaginário das pessoas.
Mas agentes da desinformação conhecem estratégias eficazes para manipulá-lo. A repetição é uma delas. O cérebro humano tende a confundir aquilo que é familiar com aquilo que é verdadeiro. Por isso, mentiras repetidas muitas vezes acabam se tornando verdades para alguns.
E é por isso também que precisamos agir desde já contra esse tipo de desinformação que não é de hoje que vem envenenando o processo democrático.
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